
Estou finalizando a leitura do zine Espaços Perigosos (Dangerous Spaces) traduzido pelas Edições Insurrectas. É o segundo zine que leio que contém críticas a processos de responsabilização, o outro foi The Broken Teapot (ainda sem tradução para o português, até onde sei).
Ambos textos tem bons pontos, como o fato de que relações de abuso possuem dinâmicas complexas que muitas vezes envolvem ambas as partes em ciclos de manipulação psicológica e violência e que as coisas não podem ser tão simples como fazer uma divisão binária entre “perpetrador” e “sobrevivente”. Nisso concordo.
O que discordo é a crítica que vem junto de que processos de responsabilização são um reflexo do sistema judiciário estatal e que buscam pessoas culpadas para exercer punição, que são um processo “puritano”, que separa anjos e demônios.
Isso está muito longe da minha compreensão de processos de responsabilização, que vai no caminho oposto, de reconhecer que todys temos incutidas dentro de nós as estruturas hierárquicas do patriarcado, da supremacia branca, do antropocentrismo, etc. E todys podemos inadvertidamente reproduzir em maior ou menor grau algum tipo de opressão ou violência. E os processos de responsabilização entram justamente aí para ajudar a pessoa que perpetrou alguma violência e opressão a enxergar seus atos, suas consequências e como isso afetou as pessoas que foram alvo direto, mas também a comunidade como um todo e a perceber o que ela pode fazer no futuro para não reproduzir mais tais opressões.
Admito que não tive muitas experiências com processos de responsabilização, mas já participei de alguns com resultados positivos. Inclusive processos com moderada violência física, onde a pessoa que perpetrou a violência teve dificuldades em não enxergar o processo como um julgamento onde ela era a única pessoa que teria “errado”. Foi preciso muita conversa para eliminar essa impressão, e mostrar que nosso intuito não era apontar que existia um lado “certo” e outro “errado”, que inclusive é possível que outro lado também tenha ações pelas quais se responsabilizar. Mas que naquele momento eram as suas ações que estavam sendo discutidas, e que o processo de responsabilização era algo bom para crescermos juntys como pessoas (pois o erro de uma facilmente pode gerar identificação em outras) e deixar nossas comunidades mais fortes.
Entendo que nem sempre, como em casos de agressões e abusos mais graves, é possível manter a pessoa que perpetrou a violência como parte da comunidade. Ainda mais em um momento histórico onde não temos fortes e bem desenvolvidas as ferramentas necessárias para cuidar da pessoa que sofreu a violência e acompanhar aquela que perpetrou para tentar ajudá-la a perceber as consequências de suas ações e como evitar isso no futuro. Então muitas vezes, por falta de recursos, precisamos escolher um lado e faz sentido escolher o lado de quem foi alvo da violência. E o banimento pode ser uma escolha difícil, mas necessária.
A alternativa oferecida em Espaços Perigosos aos processos de responsabilização é a vingança. E embora isso possa trazer certa satisfação pessoal e restaurar a agência da pessoa sobrevivente, nem todo mundo se sente confortável e tem condições para exercer violência contra outra pessoa humana. O que restaria para elas? Além disso, a violência e a punição não são formas eficientes de transformar o comportamento de alguém. O sistema industrial carcerário tá aí pra nos provar isso. Quando muito a pessoa vai deixar de cometer o ato por medo e, no momento em que se sentir segura ou em que os benefícios superarem a punição, vai repetí-lo.
Também busco acolher as possíveis mágoas com processos de responsabilização imperfeitos. Afinal, estamos aprendendo. Crescemos em um mundo punitivo que tenta nos encaixar em categorias binárias e nos despiu de nossa agência para lidar com esses conflitos. Romper com essas dinâmicas leva tempo e é bem provável que algumas de nós irão se machucar no caminho.
Mas acreditar que as pessoas são complexas e podem mudar é uma das coisas que nos diferem de fascistas. E os processos de responsabilização, a meu ver, são as melhores ferramentas que dispomos no momento para reduzir as opressões, os abusos, as violências em nossos meios e fortalecer nossas comunidades para resistir ao assédio brutal do Estado e do Capital.
Faz uns anos traduzi um capítulo sobre processos de responsabilização do livro Beyond Survival – Strategies and Stories from the Transformative Justice Movement (2020, Editora AK Press). Vou deixar aqui para quem quiser dar uma olhada.
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